Lúcio Flávio Pinto lança em Belém a nova edição de 'Memória de Santarém', obra sobre a história e os desafios da Amazônia
Lúcio Flávio Pinto
Arquivo pessoal
O jornalista e sociólogo santareno Lúcio Flávio Pinto, um dos maiores especialistas brasileiros em temas ligados à Amazônia, lançará na terça-feira (18), em Belém, a nova edição de seu livro “Memória de Santarém” (Editora Letra Selvagem). O evento será às 18h, no auditório do Ministério Público Federal (MPF), com apoio do Sindicato dos Jornalistas do Pará (Sinjor).
Com 904 páginas, a obra é resultado de décadas de pesquisa e mergulho em arquivos públicos e privados, jornais antigos e fontes pouco exploradas. Mais do que uma coletânea de textos, Memória de Santarém é uma crônica ampla sobre o Baixo Amazonas e sua relação com os ciclos de exploração e resistência que marcam a história da região há mais de dois séculos.
Um retrato da Amazônia a partir de Santarém
Lúcio Flávio Pinto utiliza Santarém como ponto de partida para discutir as grandes questões amazônicas, da colonização ao extrativismo contemporâneo, do desmatamento às disputas políticas e econômicas que mantêm a região sob domínio de interesses externos.
“O livro não trata exclusivamente dos acontecimentos de Santarém; a rigor, aborda as questões amazônicas desse lugar emblemático na história da região”, explica o jornalista Miguel Oliveira, responsável pela direção editorial da obra.
A publicação combina jornalismo investigativo e reflexão sociológica para explicar, de forma documentada, a estagnação econômica e social da Amazônia, que desde o período colonial vive sob o peso das decisões tomadas fora de seu território.
Jornalismo com profundidade
Colegas de profissão ressaltam a importância do trabalho de Lúcio para o jornalismo amazônico. O jornalista Nélio Palheta, que comandou o jornalismo da TV Liberal quando Lúcio foi comentarista do Bom Dia Pará, lembra a capacidade crítica do autor:
“Lúcio sempre foi atento, estudioso e dono de um senso crítico profundo. Não se limitava à crítica; apontava caminhos, fazendo um jornalismo que ainda hoje serve como retrovisor para compreender o futuro da Amazônia”, afirma.
Para Nicodemos Sena, diretor da Letra Selvagem, o livro resulta de um “garimpo minucioso” de fatos e personagens. “Ele mergulhou com paixão e ciência em cada registro, oferecendo ao leitor uma fonte autêntica e segura de informação sobre a região”, destaca.
Reconhecimento e legado
Ao longo de quase seis décadas de carreira, Lúcio Flávio Pinto construiu uma trajetória marcada pela independência e defesa intransigente da Amazônia. Fundador do Jornal Pessoal, publicação quinzenal escrita e editada apenas por ele , o santareno coleciona prêmios nacionais e internacionais, entre eles quatro Prêmios Esso, dois Fenaj, o Colombe d’Oro per la Pace (Itália, 1997) e o Prêmio do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) de Nova York, em 2005.
Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, foi também professor visitante na Universidade da Flórida (EUA) e na Universidade Federal do Pará (UFPA). Seu olhar profundo sobre a realidade amazônica fez dele uma das vozes mais respeitadas do jornalismo brasileiro.
Lançamento simbólico
O evento de lançamento, sediado no MPF, tem forte carga simbólica: une o jornalismo e as instituições públicas que lutam pela preservação do bioma amazônico, tema central da COP 30, que ocorre em Belém.
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O Sinjor, entidade que Lúcio presidiu entre 1978 e 1981, apoia o evento como forma de reconhecimento à trajetória do colega. “É uma justa homenagem a quem sempre colocou o jornalismo a serviço da verdade e da Amazônia”, reforça a entidade.
Um livro para não esquecer
Reeditado e ampliado, Memória de Santarém é considerado por críticos e estudiosos um marco literário e histórico, uma espécie de “Os Sertões” da Amazônia. A obra recupera memórias, personagens e episódios apagados da historiografia oficial, valorizando a voz dos povos invisibilizados: caboclos, indígenas, ribeirinhos e quilombolas.
Para Nicodemos Sena, “Lúcio buscou a alma secreta do movimento histórico da Amazônia”, revelando a luta e a resistência das populações que moldaram a região.
Ao relançar Memória de Santarém justamente no contexto da COP 30, Lúcio Flávio Pinto reafirma, mesmo sem estar sob os holofotes, seu papel essencial na defesa da Amazônia, não apenas como território, mas como ideia de civilização e justiça.
Apresentação do livro
"A civilização humana no Vale Amazônico, datada de mais ou menos 10 mil anos, não deixou marcas palpáveis, pirâmides e obeliscos. Povos ágrafos, como os que o espanhol Francisco de Orellana encontrou na Amazônia em 1542, deixaram vestígios sutis, quase imperceptíveis, de sua existência; a transmissão oral era praticamente o único recurso que tinham para registrar e preservar suas crenças e cosmovisão.
Nas quase mil páginas dessa “Amazoníada” intitulada Memória de Santarém, o sociólogo, escritor e jornalista de “longo curso”, Lúcio Flávio Pinto, não apenas historia episódios que marcaram o Baixo Amazonas nos séculos XIX e XX, como também recolhe, valendo-se da memória coletiva não registrada em livros, os “vestígios sutis”, que uma historiografia oficial provavelmente desprezaria, da existência dos povos subalternizados que habitaram a região onde o rio Tapajós deságua no Amazonas. Pois não é que este livro “fala”, e fala coisas muito importantes, paradoxalmente, também pelo que não diz?
Publicado em 2010, sob a direção editorial do jornalista Miguel Nogueira de Oliveira, e agora reeditado com atualizações, Memória de Santarém parece ser, para Lúcio Flávio Pinto (e para todos nós, amazônidas), aquilo que para Euclides da Cunha foram Os sertões, em relação ao Nordeste, e À margem da História (que, infelizmente, Euclides não chegou a concluir) em relação à Amazônia: o “livro vingador”. Vingador em relação à tibieza, inapetência, incúria, obscurantismo, boçalidade e truculência das elites amazônicas, personificadas nos representantes da oligarquia do Baixo Amazonas, cujas toscas atitudes e tresloucadas estripulias, transcritas ora em tom grave ora com ironia, num relato que transita entre o jornalismo e a sociologia, explicam bem as razões da secular estagnação econômica, social e política à que a Amazônia sempre esteve submetida, a reboque dos interesses e ditames dos governos centrais, desde a Colônia até os dias de hoje. Aliás, “colônia” é o que a Amazônia tem sido, em todos os períodos de sua história, como diz o título de outro livro fundamental para a tomada de consciência: Amazônia, colônia do Brasil (Violeta Loureiro).
Ao final da leitura de Memória de Santarém fica claro que esta obra monumental, de inegável importância não apenas para a população do Baixo Amazonas, foi escrita com a mesma paixão e senso de responsabilidade com que o sábio Nunes Pereira escreveu Moronguêtá, um decameron indígena, clássico da bibliografia amazônica, precioso repositório de ritos, costumes, histórias e saberes dos povos indígenas. À falta de pirâmides e outros vestígios materiais; à falta de registros escritos da vida comezinha e dos feitos heroicos dos filhos do cacique Nurandaluguaburabara, Lúcio Flávio Pinto, no silêncio capaz de furar os tímpanos de quem ama a justiça, buscou a “alma secreta do movimento histórico”, que os rituais de uma religiosidade capturada pelo sectarismo religioso e as narrativas ufanistas das elites provincianas tentam a todo custo sufocar.
A ausência dos pobres diabos, deserdados da terra, na historiografia oficial – a começar pelos “tapuios” que habitavam a zona que os brancos apelidaram de “Aldeia”, e, por fim, as gerações de tapuios que os sucederam – é algo tão gritante, tão escandaloso e revoltante que, paradoxalmente, à revelia de seus algozes, esse apagamento quase absoluto torna-os presentes. Por exemplo, nas façanhas do povo cabano, que eu, escondido atrás da porta, ouvia a minha avó cochichar, temerosa, com outros adultos, como se o assunto tivesse algo de pornográfico ou criminoso. Ou na figura socialmente insignificante, mas simbolicamente poderosa do pedreiro Alírio de Castro Filho, vulgo “Banana”, que, sem Partido ou ideologia, movido unicamente pelo instinto de classe, tombou mortalmente ferido ao lado do prefeito cassado e caçado, Elias Pinto, numa fatídica tarde de 1968, atingido pelas pitombas de aço disparadas por agentes da oligarquia política urbana, contestada pelo voto, que até hoje dita as regras e aplica o porrete em Santarém. Como bucha e alvo de canhão, é dessa maneira que os pobres da terra (caboclos, indígenas, quilombolas, ribeirinhos) entram na História. Nas entrelinhas de uma profusão de relatos, notícias e informações, “garimpadas” em papéis carunchentos, arquivos poeirentos, amarelecidas páginas de extintos jornais ou nas grotas da memória, a “vida invisível” dos legítimos donos desta terra clama por decifração. Tornar consciente essa necessidade é, provavelmente t e, ao lado de outras qualidades, o mérito primordial desta obra."
Nicodemos Sena
Editora Letra SelvagemFONTE: https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2025/11/14/lucio-flavio-pinto-lanca-em-belem-a-nova-edicao-de-memoria-de-santarem-obra-sobre-a-historia-e-os-desafios-da-amazonia.ghtml